quinta-feira, julho 30, 2009

O Delírio de Dawkins

“Dawkins está correto - inquestionavelmente correto - quando propõe que não embasemos a vida em delírios. Precisamos examinar nossas crenças - em especial se formos ingênuos o bastante para acreditar, primeiramente, que não temos nenhuma. No entanto, pergunto-me: quem está, de fato, iludido sobre Deus?” (Alister McGrath)

Antes de se transformar no guru do ateísmo "científico" que se contenta em ser hoje, o biólogo britânico Richard Dawkins foi por muito tempo um dos mais bem-sucedidos dentre os cientistas que se ocupam da delicada e por vezes espinhosa missão de tornar a ciência inteligível para o leitor não especializado. Suas obras de divulgação científica inspiraram e despertaram entusiasmo e curiosidade em muita gente, e, só por isso, ele já seria merecedor de algum crédito. Isso tudo torna ainda mais difícil de compreender o fato de que ele hoje se empenhe, de forma absolutamente fanática e amarga, numa contínua tentativa de dissuadir a humanidade de qualquer tipo de crença na divindade, levantando a bandeira de que "a ciência explica tudo". Com esse objetivo, escreveu um verdadeiro tijolo de mais de 500 páginas, intitulado Deus: um Delírio, onde tenta provar por A mais B que a crença em Deus não passa de uma herança perniciosa e ridícula que ficou de épocas supersticiosas, e que seria melhor extirpar de uma vez, já que, além de inibir o pensamento crítico e obstruir o avanço da ciência, ela se constitui (segundo ele) na "raiz de todo o mal" sofrido pela humanidade. Para dar a resposta necessária, ninguém melhor que um colega de Dawkins (ambos são professores na Universidade de Oxford) que, ateu na juventude, converteu-se ao cristianismo, e, hoje, doutor tanto em biologia molecular quanto em teologia, está preparado como poucos para discorrer sobre o conflito (se é que precisa ser um conflito) entre ciência e fé. Este é Alister McGrath, autor de O Delírio de Dawkins.

Tendo sido durante anos um admirador do trabalho de Dawkins como cientista e divulgador da ciência, McGrath mostra-se perplexo de constatar o quanto seu colega afastou-se da razão que alega defender, com o objetivo de propagandear suas idéias ateístas. Não o critica por ser ateu - pois esse é um direito que assiste tanto a Dawkins quanto a qualquer pessoa, assim como o direito de ter fé, se tal for a sua opção -, mas pela atitude inflexível, intolerante e, surpreendentemente, cheia de dogmas que ele demonstra em seu livro.

Tive o primeiro contato com a obra de Dawkins quando tinha uns 18 anos de idade e encontrei por acaso seu livro O Relojoeiro Cego na livraria da universidade. Na época, eu vivia contando os tostões (não raro, saía de casa só com o dinheiro certo para o ônibus), de modo que não tinha a menor condição de comprá-lo, mas voltei diversas vezes só para ler mais um trecho, sentindo-me cativado pela defesa vigorosa e apaixonada que Dawkins fazia do darwinismo, e que me parecia ser uma prova cabal de que uma atitude científica podia, sim, ser conciliada com a intensidade emocional e, por conseguinte, com uma certa forma de idealismo. Para qualquer pessoa que, sem a obrigação acadêmica ou profissional de fazê-lo, movida apenas pela curiosidade e pelo amor ao conhecimento, haja se dado ao trabalho de estudar de fato a teoria da evolução e de se inteirar do que ela realmente diz, há pouca coisa mais exasperante que ouvi-la ser atacada por pessoas que, nos próprios "argumentos" (?) que usam, entregam o fato de que nunca chegaram sequer a entendê-la - nem querem, pois, caso a entendessem, correriam o risco de começar a achar que ela faz sentido.

Embora isso possa parecer uma desnecessária divagação pessoal, creio que pode ser útil, por ilustrativo, sintetizar aqui a experiência intelectual de um leitor de Dawkins no tocante ao suposto choque "Ciência x Religião". O que há é que sou e fui católico toda a minha vida; sou também um darwinista convicto, e nunca vivi um só instante de conflito devido ao fato de ser ambas as coisas. Para mim, a evolução biológica é um fato além de qualquer contestação possível; a dúvida que ainda paira em torno dela reside somente em ainda estarmos longe de compreender integralmente de que forma ela acontece. O livro do Gênese não precisa (nem deve) ser lido literalmente - trata-se de uma alegoria, e, também, de uma explicação adaptada à compreensão das pessoas da época. Não há nada de intrinsecamente anti-religioso em aceitar a noção de que a natureza segue seu curso, submetida a determinadas leis - uma das quais é a da evolução, que determina que as espécies vivas se transformem, ao longo de milhares ou milhões de anos, a fim de melhorar suas chances de sobrevivência dentro das condições impostas pelo ambiente. Tal noção nada tem de incompatível com a crença em Deus: conforme a expressão extraordinariamente feliz empregada por McGrath, "Deus deu corda ao relógio e, então, deixou-o trabalhar por si". A atitude de certas correntes religiosas (ou, talvez, nem isso: a de alguns indivíduos dentro delas), sim, é anticientífica ao usar a crença como uma fonte de respostas fáceis: quando defrontadas com qualquer mistério ou indagação relacionada a algum fenômeno da natureza, essas pessoas simplesmente declaram que "isso é assim porque Deus quer que seja assim e pronto". Esse tipo de atitude me enoja e revolta. Ninguém agrada a Deus sendo burro, e menos ainda usando o nome d'Ele como desculpa esfarrapada para a própria preguiça de pensar. O que Dawkins faz, infelizmente, é fechar os olhos ao fato de que só alguns extremistas e fanáticos agem dessa forma: a fim de tentar dar consistência a seus argumentos, ele finge acreditar que toda e qualquer pessoa religiosa usa necessariamente sua crença como um álibi para a ignorância voluntária, e que, portanto, fé é incompatível com ciência. Ele se empenha para vender sua idéia de que o verdadeiro cientista deve ser ateu - e, para vendê-la, está disposto a fazer o que for necessário, inclusive manipular informações. Nas palavras de McGrath, "um dos traços mais característicos da polêmica anti-religiosa de Dawkins é apresentar o patológico como o normal, o extremo como o centro, o excêntrico como o padrão. Isso em geral funciona bem para o seu público, que supostamente pouco conhece de religião e, com muita probabilidade, menos ainda se importe com ela. O que, no entanto, não é aceitável nem científico."

E, de fato, nota-se que muitas vezes Dawkins torna-se o que poderíamos chamar um "cego guiando cegos", pois não consegue ocultar que desconhece a coisa que está atacando. Ao contrário de outros autores ateus, como Christopher Hitchens, que pelo menos sabe do que está falando, o autor de Deus: um Delírio mostra-se deploravelmente ignorante em matéria de cultura religiosa. Por tal razão, o maior efeito que seu trabalho atual alcança é o de perpetuar preconceitos - coisa que, a meu ver, deveria estar abaixo da dignidade de qualquer pessoa que se pretenda um cientista. Pintando todos os cristãos - aliás, todos os adeptos de qualquer religião - como fanáticos pervertidos e auto-iludidos, Dawkins age como os homens que o imperador Nero mandava infiltrarem-se pelos mercados e tavernas de Roma, para espalhar rumores de que os cristãos praticavam incesto e canibalismo em suas reuniões secretas - tudo para preparar a opinião pública para uma perseguição em massa contra essa estranha seita. Contra os pontos levantados por Hitchens, é possível ter uma discussão decente; quanto a Dawkins, tudo o que se pode fazer é desejar que ele fosse menos obtuso e tendencioso.

"A visão dawkinsiana da realidade", escreve McGrath, "é uma imagem invertida da concepção encontrada em algumas das seções mais exóticas do fundamentalismo americano". Outra frase certeira. Talvez a coisa mais surpreendente na argumentação de Dawkins, e na visão de mundo por trás dela, seja perceber o quanto ele se tornou dogmático em seu próprio antidogmatismo. Acusa os religiosos de serem "imunes a qualquer argumentação" e de teimarem em manter suas crenças "a despeito da ausência de qualquer evidência - e até mesmo contra ela", mas não parece se dar conta de que faz as mesmas coisas de que acusa os outros. A mim parece que fanatismo algum pode ser bom - não importa que seja fanatismo teísta ou ateísta. Não admira que nem mesmo a maioria dos cientistas que são ateus simpatizem com Dawkins e muito menos queiram ter seus nomes associados, de qualquer forma que seja, ao dele: não se pode querer que um sistema de idéias seja levado a sério, quando alguém que se diz seu representante parece querer que todos os que pensam diferente sejam queimados na fogueira. McGrath menciona que "um respeitável cientista ateu, colega em Oxford, me pediu (...): 'Não julgue todos nós por essa conversa fiada pseudo-intelectual'". Outro cientista, Michael Ruse, igualmente ateu, registrou, e McGrath relata: "Quando João Paulo II escreveu uma carta endossando o darwinismo, a resposta de Richard Dawkins foi simplesmente dizer que o papa era hipócrita, que ele não podia falar genuinamente sobre a ciência e que o próprio Dawkins preferiria um fundamentalista honesto." Evidentemente que preferiria: isso lhe daria excelente motivo para lançar mais farpas contra a Igreja Católica e, por extensão, contra o cristianismo em geral, acusando-o de ser anti-ciência. E, claro, pela ótica de Dawkins, qualquer religioso que se declare favorável à ciência está sendo "hipócrita"...

Não há dúvida de que o mundo estaria melhor sem o fundamentalismo religioso - mas será que seria vantagem substituí-lo pelo fundamentalismo ateu de Dawkins? É realmente digno de lástima que um cientista de tanto mérito se empenhe hoje nesse tipo de "cruzada anti-Deus", ao invés de devotar sua energia e entusiasmo ao progresso e à divulgação da ciência, como fez durante tanto tempo, mas talvez não haja muito o que fazer além de ter esperanças de que Dawkins acabe vendo a luz - não uma luz divina, já que despreza tal idéia (e tem todo o direito de fazê-lo), mas a luz da razão, essa mesma razão que ele tanto defende com palavras e da qual tanto se desvia com suas atitudes.