segunda-feira, agosto 08, 2011

Uma Princesa de Marte

Ando me surpreendendo ao perambular pelas livrarias e ver que vários livros antigos, de diferentes gêneros, que o público brasileiro nunca havia tido a chance de ter em mãos, e que eu próprio só conhecia, na maioria dos casos, por menções indiretas e comentários de outros autores, estão sendo lançados agora, pela primeira vez, no país  bons exemplos são A Águia da Nona e este Uma Princesa de Marte, publicado originalmente em 1917 e que só agora ganha versão nacional. Claro, costuma haver boas razões comerciais para esses lançamentos inauditos, geralmente razões ligadas ao cinema. Com efeito, quando estava exposto na livraria onde o comprei, o meu exemplar de Uma Princesa de Marte exibia atravessada na capa uma banda de papel em que se lia: "O clássico que inspirou James Cameron na criação de Avatar". Pessoalmente, considero um exemplo do tipo mais óbvio de oportunismo usar o sucesso de uma obra recente para tentar vender uma antiga, e a questão torna-se ainda mais espinhosa no caso de haver uma disparidade gritante entre o valor artístico de uma e de outra – o que não afirmo que seja o caso aqui: Uma Princesa de Marte não é um grande livro, e, quanto a Avatar, não vi o filme, e, portanto não me atrevo a julgá-lo. Mas suponho que já deva dar-me por feliz de, até este momento, nunca ter visto uma nova edição da Ilíada sendo apregoada como o "livro que inspirou o filme Troia, com Brad Pitt". Ainda bem, pois no dia em que isso acontecer, vai haver mortes.

Obs.: A espinafração destina-se a quem teve a ideia de colocar a tal banda de papel na capa do livro, não a quem tomou a louvável decisão de mandar traduzi-lo e publicá-lo. Desde que, é claro, ambos não sejam a mesma pessoa.

Todo mundo sabe quem foi Edgar Rice Burroughs (1875-1950), o criador do megafamoso homem-macaco Tarzan. O que nem todo mundo sabe é que ele também escrevia ficção científica, se é que é adequado chamar assim histórias como as de sua série Barsoom, também conhecida como John Carter of Mars – o primeiro nome, segundo o autor, é como o planeta Marte é chamado por seus habitantes, e o segundo é o de seu principal herói. Trata-se muito mais de narrativas de fantasia, nas quais o ambiente interplanetário é usado apenas como recurso para situar o mundo imaginário que serve de palco às aventuras; pouca diferença faria se, em vez de ficar em Marte, o mundo de Barsoom tivesse existido num período esquecido da história da própria Terra, como a Terra-média de J. R. R. Tolkien ou a Era Hiboriana de Robert E. Howard – salientando que o fato de eu citar esses exemplos não deve levar ninguém a entender que eu esteja colocando Barsoom no mesmo nível das criações desses mestres.

O protagonista da saga marciana da qual este livro é o primeiro episódio é o capitão John Carter, soldado do exército confederado durante a Guerra Civil Americana. Ao ver-se ocioso e sem recursos depois da derrota de seu lado na guerra, Carter decide unir forças com James Powell, um ex-companheiro de armas, para tomarem parte na Corrida do Ouro, que na época levava milhares de aventureiros a deixarem os estados do leste, já razoavelmente civilizados e seguros, em direção ao oeste, ainda em sua maior parte uma terra selvagem e pouco explorada, sonhando encontrar um veio do precioso metal. Sonho esse que Carter e seu amigo realizam – mas não têm a chance de desfrutar sua nova riqueza, pois logo depois Powell é morto numa emboscada por índios apaches (em 1917, ainda era liberado usar personagens índios em papéis de "bandido"). Depois de uma inútil tentativa de salvar a vida do companheiro, Carter, perseguido pelos selvagens, acaba refugiando-se numa caverna onde coisas estranhas acontecem. Tão estranhas que, sem saber como, o herói se vê transportado ao planeta Marte.

E Marte, como descrito por Burroughs, é um mundo selvagem e inóspito, assolado pela escassez de água (ainda exibe os leitos secos de mares desaparecidos), onde as formas de vida precisam conviver com a rápida alternância de dias tórridos e noites geladas. Os marcianos, com os quais Carter logo trava contato, são seres imensos, com mais de quatro metros de altura, pele esverdeada e seis membros, que preferem ocupar seu tempo caçando e guerreando uns contra os outros ao invés de dedicar-se às ciências ou a trabalhos mais técnicos, razão pela qual, em matéria de tecnologia, sua civilização parece ter estacionado há milênios: o máximo que os marcianos têm nesse campo são armas de fogo, que usam em conjunto com lanças, espadas e outras armas brancas.

O terráqueo logo descobre que, devido à diferença de gravidade entre os dois planetas, ele agora possui uma força e agilidade capazes de impressionar os marcianos e impor-lhes respeito, apesar de seu pequeno tamanho se comparado a eles. Descobre, além disso, que, como na Terra, também naquele mundo as pessoas variam em caráter: conhece tipos que vão desde o valente e justo líder guerreiro Tars Tarkas e a bondosa Sola, até o tirânico Tal Hajus, chefe da tribo. Existem outras tribos de marcianos verdes, e a convivência de uma tribo com as outras quase nunca é pacífica. Mais ainda: o planeta também é o lar de outra raça inteligente, esta formada por seres humanos fisicamente idênticos aos terráqueos, com a diferença de que sua pele tem um tom de cobre avermelhado. É a essa raça que pertence a princesa do título, a bela Dejah Thoris, que cai prisioneira dos marcianos verdes e por quem Carter, mui previsivelmente, acaba apaixonado.

Francamente, eu estaria sendo generoso demais se dissesse que Uma Princesa de Marte é um ótimo livro: como já sabe quem leu algum livro de Tarzan (eu li dois, em edições antigas que encontrei na biblioteca pública quando era garoto), os personagens de Burroughs carecem de profundidade e complexidade, são em sua maioria estereotipados – embora nesse ponto seja preciso admitir que a princesa Dejah Thoris mostra-se corajosa e com uma certa sabedoria, bem diferente das heroínas que infestavam muitas histórias de ficção científica da época e cuja função de existir ia pouco além de serem carregadas aos gritos por algum monstro gelatinoso de olhos saltados... – e a narrativa, durante a maior parte do tempo, é tosca, chegando a tornar entediantes até mesmo passagens repletas de ação vertiginosa. Mesmo assim, há uma certa sedução na exótica paisagem marciana e no jeitão de paladino medieval do herói John Carter. Se quiserem encarar, leiam como curiosidade, mas não esperem encontrar uma história que vá mudar seu modo de ver a literatura.