terça-feira, fevereiro 28, 2012

A Assombrosa Viagem de Pompônio Flato

Eu não conhecia o escritor espanhol Eduardo Mendoza até questão de dias atrás. Então, enquanto esperava por um voo no aeroporto de Porto Alegre, entrei na livraria LaSelva e, na caixa de "oportunidades", encontrei este livro por menos de dez reais. Comprei-o; ao desembarcar no meu destino poucas horas depois, já tinha lido metade dele, pois é uma leitura fácil sem ser rasa, que prende a atenção e, de quebra, divertidíssima. O livro encaixa-se com perfeição na curiosa definição que aparece na sinopse da contracapa: "cruzamento de romance histórico, romance policial, hagiografia e paródia de todos esses gêneros".

Pompônio Flato (nenhum prêmio por identificar o trocadilho do último nome) é um filósofo e erudito romano do primeiro século de nossa era, que, levado por suas pesquisas de história natural, viaja até os confins da Palestina em busca de uma fonte cujas águas teriam a propriedade de aumentar a sabedoria de quem as bebe. Depois de provar a água de diversas fontes sem nada conseguir além de um persistente desarranjo intestinal, acaba perdido no deserto, sem montaria, sem dinheiro e praticamente só com a roupa do corpo. É socorrido por um grupo de mercadores árabes, que o levam em sua companhia até cruzarem com a comitiva de um magistrado romano, Ápio Pulcro, que se dirige a uma cidadezinha da Galileia a fim de administrar justiça num caso de assassinato. Pompônio então se junta a Pulcro, que promete conseguir-lhe meios de voltar a Roma assim que tiver resolvido o assunto. E, sem ter planejado isso, o nosso filósofo acaba chegando à tal cidadezinha, denominada Nazaré.

O caso em questão é a respeito do assassinato de um certo Epulão, o homem mais rico da cidade, que foi encontrado morto em sua biblioteca, com a porta e a janela fechadas e sem que nenhuma fechadura tivesse sido forçada. A arma do crime, encontrada no local, foi um formão para madeira, o que faz com que as acusações recaiam sobre o carpinteiro que estava fazendo um serviço para o morto e em razão disso tinha acesso ao interior de sua casa. O nome do carpinteiro: José.

As autoridades judaicas locais já decidiram que José é culpado e o condenaram à morte, mas tal sentença não pode ser aplicada sem ser antes referendada por uma autoridade romana. Ápio Pulcro, entediado e ansioso por partir, dá logo o seu aval e fica marcada a execução para o entardecer do dia seguinte. Entretanto, Pompônio é procurado pelo filho do condenado, um menino muito esperto e ao mesmo tempo adoravelmente ingênuo, Jesus, que lhe oferece parte das economias do pai para que sirva ao mesmo tempo de detetive e advogado de defesa, a fim de descobrir o verdadeiro assassino e provar a inocência do carpinteiro. Separado de seus recursos e sem nada para fazer enquanto espera a hora de voltar para casa, o filósofo aceita.

Assim tem início uma parceria insólita e que dá origem a situações ora interessantes, ora muito engraçadas. Pompônio tem como instrumentos sua mente lógica de filósofo e a habilidade oratória que lhe permite extrair de vários habitantes da cidade as informações de que necessita; o menino Jesus, por seu turno, possui o conhecimento do terreno e dos costumes locais. Os dois interagem com vários personagens já conhecidos de quem leu os Evangelhos e com outros que é fácil imaginar que poderiam ter vivido naquela época e região: operários, comerciantes, sacerdotes, prostitutas, soldados, mendigos. Um destes últimos é Lázaro, o leproso (não confundir com o amigo de Jesus que seria ressuscitado por ele: os judeus possuíam poucos nomes próprios, de modo que a maioria das pessoas tinha inúmeros homônimos), que, junto com o rico Epulão, mais tarde se tornaria personagem de uma parábola de Jesus. No decorrer das investigações, Pompônio vai ensinando a Jesus um pouco da filosofia e da mitologia greco-romanas - e, para sua surpresa, também aprendendo algumas coisas com o menino. Como ocorre numa boa trama policial, a história vai se desenrolando como um tapete no ritmo das pistas encontradas, pistas essas que vão se encadeando até conduzir a um final clássico para o gênero - ou seja, inesperado.

A história é contada em primeira pessoa, sob a forma de uma carta que Pompônio redige a um amigo, um tal Fábio, e a linguagem é bem a que se esperaria de um filósofo romano, o que resulta fazer de A Assombrosa Viagem... uma leitura deliciosa para quem possui um bom vocabulário, mas talvez impraticável para quem não preenche esse requisito. Mendoza explora com habilidade as personalidades que os personagens bíblicos poderiam ter tido - personalidades plausíveis com base no que sabemos sobre eles: quando Maria, mãe de Jesus, conversa com Pompônio, humildemente declara-se uma "mulher ignorante" (que no livro está grafado "ingnorante", num dos mais pavorosos erros de digitação/revisão que já vi), mas seu próprio discurso desmente isso, pois ela demonstra uma visão aguçada e inteligente da sociedade de seu país e mostra-se desejosa de que seu filho aprenda as coisas de que necessitará para viver no "mundo lá fora", razão pela qual vê com bons olhos o laço afetivo e a relação de mestre e discípulo que se formaram entre o menino e o filósofo, a despeito de este último ser pagão, fato que, aos olhos da maioria dos judeus da época, anularia por si só qualquer boa qualidade que ele pudesse ter.

Sempre sob o filtro da ironia e do bom humor, o livro também enfoca a diferença essencial que havia entre os judeus e os demais povos que faziam parte do Império Romano: um zelo religioso muitas vezes intransigente, que se sobrepunha a qualquer ditame lógico ou constatação prática. Explicando mais claramente: logo que um país era conquistado, seus habitantes naturalmente tomavam-se de um ódio apaixonado contra Roma e tudo o que dela viesse - mas algum tempo depois, se não eles próprios, seus filhos e netos aprendiam a ver as vantagens de fazer parte do Império, o que, via de regra, significava uma vida mais segura e farta do que antes, além de boas estradas, banhos públicos, planejamento urbano, incremento da economia e da cultura, e um sistema de justiça diferente da tradicional "lei do mais forte", que era a única lei que a maioria desses povos conhecia até então. Para muita gente, esses benefícios concretos pesavam mais que uma noção abstrata como a de liberdade, de modo que acabavam passando a cooperar voluntariamente com os romanos; decorrendo mais tempo, a própria separação entre conquistadores e conquistados tornava-se indistinta, e gradualmente ocorria uma miscigenação étnica e cultural, que está na origem de não poucos povos modernos. Já com os judeus, ou ao menos com certos setores de sua sociedade, isso não acontecia. Para esses, religião e política não apenas estavam estreitamente ligados: eram, na prática, uma coisa só, de modo que, para eles, era ao mesmo tempo uma questão de virtude e de patriotismo manterem-se impermeáveis a qualquer influência cultural e avessos a qualquer tipo de cooperação ou tolerância.

Há pouco a reclamar de Mendoza no quesito de conhecimentos históricos e bíblicos, mas não deixei de notar uma séria distorção temporal: primeiro Ápio Pulcro conta a Pompônio ter sido partidário de Júlio César, mas que, depois da morte deste, teria passado para a facção de Brutus e Cássio para lutar contra Otávio (depois imperador com o nome de Augusto, e que era quem governava o Império no tempo da narrativa); mais tarde, um soldado de nome Quadrato declara haver lutado sob as ordens de Pompeu, contra César, na batalha de Farsália. Ora, se Jesus era então um menino, e se as Metamorfoses de Ovídio haviam sido publicadas recentemente (Pompônio menciona esse livro), então já deveriam ter passado mais de 50 anos desde a morte de Júlio César. Claro, pode ser tudo bravata de um soldado pouco instruído e sem-noção, o que, aliás, estaria plenamente de acordo com o estilo irônico do livro. Por outro lado, deixou-me um tanto desconfortável o fato de o tempo dos verbos ficar variando a toda hora do presente para o pretérito e vice-versa - coisa que costumo apontar como uma falha de redação quando alguém me pede um parecer sobre algum texto. Mas não é nada que não dê para relevar, e quem ler o livro irá sem dúvida divertir-se muito.