quarta-feira, fevereiro 03, 2016

A Máquina de Matar

Cerca de um ano depois de ter conseguido eliminar Attel Malagate, o primeiro de sua lista negra, Kirth Gersen atravessa um período de marasmo. Suas investigações em busca dos outros Príncipes-Demônios parecem ter chegado a um beco sem saída. Nessa situação, ele aceita um convite para uma reunião com um oficial da CCPI (Companhia de Coordenação Policial Intermundos), organização para a qual já trabalhou como freelancer no passado. O oficial tem em alta conta as habilidades de Gersen, e por isso deseja enviá-lo para um planeta periférico, no qual ele tem motivos para acreditar que certo indivíduo procurado pela CCPI esteja tratando de seus próprios negócios. A tarefa de Gersen seria a de localizar o homem e trazê-lo de volta, vivo se possível. Morto também serve. Entretanto, seu mandante em potencial se recusa a fornecer qualquer informação além das estritamente necessárias ao desempenho da missão: não diz por que o sujeito está sendo procurado e nem sequer sua verdadeira identidade, designando-o apenas por "Sr. Hoskins" – obviamente um nome fictício. Gersen, que não gosta de trabalhar no escuro, está pronto para recusar a incumbência quando o outro, quase por acaso, menciona que Kokor Hekkus, vulgo "a Máquina de Matar", um dos tristemente famosos Príncipes-Demônios, pode estar envolvido nos assuntos dos quais o procurado anda tratando. Isso muda totalmente as coisas para Gersen, que, embora mantendo a aparência de desinteresse para não dar na vista, toma no mesmo instante a decisão de aceitar a missão.

No planeta designado, Gersen testemunha o encontro de "Hoskins" com um tal Billy Windle, que ele suspeita ser um agente a serviço de Kokor Hekkus. O encontro acaba mal para "Hoskins", que perde a vida; ele estava em vias de trocar certos papéis com Windle, mas a intervenção de Gersen impede que a transação se concretize e, quando tudo termina, nosso herói se vê de posse de dois documentos. Um deles, rasgado durante a luta, está incompleto, e traz certas instruções envolvendo matemática, para algum propósito misterioso. O outro, para seu assombro, consiste em nada menos que instruções sobre como se tornar um hormagaunt – uma espécie de bicho-papão desses tempos futuristas, uma classe de homens que, segundo se diz, conseguem prolongar indefinidamente a própria vida utilizando ingredientes misteriosos obtidos dos corpos de jovens ou crianças. Como toda pessoa racional, Gersen sempre viu isso como mera fábula, mas é forçado a reconsiderar ao ver-se diante das tais instruções por escrito, que "Hoskins", sem dúvida, considerava sérias. Dizendo de outra forma: a coisa em si talvez não seja real, mas Gersen sabe agora que há pessoas que acreditam que seja – o que, para muitas finalidades, dá no mesmo. Em adição a tudo isso, um garoto que ele encontra naquele planeta afirma categoricamente que Billy Windle é mesmo um homem de Kokor Hekkus, que Hekkus é um hormagaunt, e que vive no planeta Thamber. Não que isso, em princípio, torne a coisa mais crível: Thamber é o planeta das lendas e dos contos de fadas. Aqui na Terra, quando os contos de fadas surgiram, supunha-se que as maravilhas e os horrores neles descritos acontecessem em "reinos distantes", pois, naquela época, nosso mundo ainda possuía suficientes partes inexploradas para permitir o benefício da dúvida quanto à existência de lugares assim; já nos tempos pós-exploração espacial em que se desenrola a Saga dos Príncipes-Demônios, as bruxas, os dragões e as princesas encantadas "migraram" para esse planeta misterioso, de localização desconhecida e existência duvidosa. Portanto, no que diz respeito a Gersen, o assunto fica sobrestado até que novos elementos surjam; ele já viu coisas demais para fechar a mente a qualquer possibilidade, mesmo as mais fantásticas.

Gersen tem seus motivos para trabalhar ocasionalmente para a CCPI, e o pagamento oferecido por cada missão não é o principal deles; para ele, ter contatos dentro da organização é muito mais valioso, pois lhe garante acesso a informações que não estariam disponíveis a pessoas comuns, e que, para ele, podem ser de importância capital. Pouco mais de um mês depois do incidente com o "Sr. Hoskins", o Oikumene (termo que Jack Vance foi buscar no grego clássico, e que significa algo como “o universo habitado”) começa a ser assolado por uma onda de sequestros. Não que sequestros sejam tão incomuns, mas esses são todos realizados de forma muito parecida, e não visam simplesmente pessoas ricas – só as extremamente ricas, ou seus entes queridos. O resgate solicitado também é o mesmo para todos: cem milhões de UPVs (a UPV, Unidade Padrão de Valor, é a moeda corrente nos mundos humanos). Tudo parece indicar que todos os sequestros tenham sido arquitetados por um mesmo mentor, e, graças ao acesso privilegiado a informações de que falávamos há pouco, Gersen descobre que esse mentor é Kokor Hekkus. Naturalmente, a questão que se impõe é: para que teria ele necessidade de tanto dinheiro, e com tamanha urgência que não pode dispor do tempo de obtê-lo por meio das suas atividades criminosas habituais, que chamam muito menos atenção?

Este é o momento em que precisamos conhecer outra particularidade desconcertante do universo exótico de Jack Vance. Como sabe quem já leu algum dos cinco volumes da Saga dos Príncipes-Demônios, o Oikumene, apesar do nome, não é todo o universo conhecido – somente a parte dele que pode ser considerada relativamente civilizada e segura. Suas "metrópoles", por assim dizer, são o sistema do Sol (o nosso, onde fica a Terra, berço da humanidade) e os de Vega e Rigel. Nesses sistemas, e nos outros que estão sob sua influência direta, existem leis, e também os órgãos dedicados a garantir que elas sejam cumpridas, o que oferece aos cidadãos um certo grau de proteção, embora, é claro, seja impossível impedir totalmente a ação de criminosos. O Oikumene é uma região vasta, mas nem de longe tão grande quanto o "resto", quer dizer, aqueles sistemas estelares que até podem já ter sido explorados e mapeados, mas que a força da lei não alcança e onde, literalmente, vale tudo – uma espécie de Velho Oeste cósmico. Esse é o assim chamado Além-Espaço, ou, às vezes, apenas o Além. Nem é preciso dizer que nele não é difícil encontrar contrabandistas, piratas, mercadores de escravos e todo tipo de bandidos comuns e incomuns, mas não só isso. Também é no Além que certas empresas são fundadas e prosperam, e não se trata somente de facções criminosas brutais e pouco organizadas: há companhias habilmente administradas por empreendedores esclarecidos, com funcionários, estatutos, hierarquia, burocracia e tudo o mais. O motivo pelo qual os fundadores dessas empresas escolheram estabelecê-las no Além-Espaço é um só: os negócios aos quais elas se dedicam são ilegais.

Uma dessas empresas é Intercâmbio, cujo ramo de atuação consiste em intermediar sequestros. A companhia possui um complexo instalado num pequeno planeta na borda do Além-Espaço, e é para lá que sequestradores de todos os lugares levam suas vítimas, eliminando a necessidade dos trabalhosos, arriscados e pouco práticos cativeiros. Mediante uma comissão sobre o valor do resgate, Intercâmbio se encarrega da custódia dos reféns e cuida de seu conforto, saúde e segurança, além de receber o pagamento e repassá-lo ao sequestrador (que, no jargão da companhia, é chamado de "patrocinador").

Intercâmbio existe há muito tempo, goza de prestígio e pode mobilizar recursos cuja extensão ninguém conhece ao certo; nem mesmo Kokor Hekkus ousaria tentar trapaceá-lo – guardem essa informação. No atual momento, aliás, Hekkus é o principal cliente da companhia: quase todos os dias uma de suas naves chega trazendo novos reféns. Gersen decide ir até lá ver o que descobre, e, para tanto, faz um acordo com um dos figurões cujos filhos foram sequestrados; é na qualidade de agente desse homem que ele chega a Intercâmbio, onde, graças à tagarelice de um empregado (encorajada por um pouco de dinheiro), fica sabendo, por fim, o que há por trás daquilo tudo. E o que descobre o surpreende, embora, pensando bem, bata com aquilo que se sabe sobre Kokor Hekkus. O Príncipe-Demônio tem duas paixões: uma são máquinas complicadas, e a outra é a beleza. Adora antiguidades e obras de arte, que compra ou rouba por todo o Oikumene e no Além-Espaço. Aconteceu então que, levado por essa obsessão estética, ele se encantou por certa jovem cuja beleza (dizem) desafia descrições, e que (também dizem) é originária do mítico Thamber. Horrorizada ante a perspectiva de cair nas mãos de Hekkus, e sabendo que ele moveria céus e terras para apanhá-la, a moça recorreu a Intercâmbio, cujas regras, como dissemos, nem mesmo ele se atreveria a tentar burlar. Agindo como sua própria patrocinadora, ela se pôs sob a guarda de Intercâmbio, fixando o próprio resgate em inacreditáveis dez bilhões de UPVs – soma superior ao orçamento anual da maioria dos planetas do Oikumene –, e só não o fixou ainda mais alto porque as normas da empresa não permitiam. Outra dessas normas estipula que, até o final de um certo prazo, só a parte diretamente interessada, isto é, a família do refém, pode pagar o resgate; passando daí, qualquer pessoa que o pague pode "tomar posse". No caso da jovem de Thamber, o prazo já expirou, de modo que Kokor Hekkus poderá finalmente tê-la… Desde que pague os dez bilhões de UPVs, que, como o funcionário de Intercâmbio observa a Gersen, são uma soma imensa, mas também são apenas cem vezes cem milhões. De posse de todas essas informações, Gersen encara o desafio de descobrir nelas alguma fresta que lhe dê a chance de localizar Kokor Hekkus, acercar-se dele e matá-lo. Um outro refém em Intercâmbio talvez possa ser útil: Myron Patch, engenheiro e industrial da cidade de Patris, no planeta Krokinole, está ali porque aceitou uma encomenda de Hekkus, que o encarregou de construir para ele uma espécie de fortaleza ambulante sobre pernas articuladas, um gigantesco centípede de metal para disseminar o terror entre certas tribos bárbaras de Thamber, que andavam a lhe causar problemas. Patch entrou em desacordo com Hekkus por motivos financeiros, e foi assim que acabou sequestrado. Gersen irá apostar que esse sujeito pode ajudá-lo a estabelecer um contato com seu alvo – e nessa aposta vai arriscar muita coisa, inclusive a vida, o que faz parte de seu destino de vingador.

Deixem-me dizer, os livros de ficção científica que já li devem contar-se pelas centenas, mas, se eu for fazer uma lista dos autores que me empolgaram tanto quanto Jack Vance, ela terá uns três nomes, no máximo quatro. Seu universo é de uma complexidade quase inacreditável, mas, apesar disso, conforme vamos imergindo nele, nos dá a sensação de uma familiaridade como só lugares reais costumam conseguir fazer. Só tenho pena de que a Saga dos Príncipes-Demônios só tenha cinco volumes, pois esse universo mereceria ser muito mais explorado, aproveitado em muito mais histórias. Como observei ao escrever sobre Star King, o autor foi afinando seus instrumentos conforme progredia nas aventuras de Kirth Gersen: o primeiro livro já era ótimo, mas tinha algumas arestas que precisavam ser aparadas, o que positivamente aconteceu em A Máquina de Matar. A narrativa ficou mais fluente, as "cores" ainda mais vivas, e a personalidade do protagonista ganhou mais profundidade. Gersen, ele próprio, também é uma "máquina de matar", quase perfeito como guerreiro, espião, detetive e assassino, treinado durante toda a vida para sua missão de vingança e educado para agir de forma estritamente racional – mas nada disso consegue apagar o fato de que ele, no fundo, é um romântico incorrigível, um fato que esta segunda história irá pôr em evidência mais do que a primeira.

A capacidade de Jack Vance de urdir tramas complexas sem deixar nenhuma ponta solta é algo de admirável. Desde as primeiras páginas, ele vai jogando pedaços de informação cuja importância só iremos compreender muito depois, num desafio de lógica investigativa que tanto Gersen quanto o leitor precisam desvendar, lembrando um pouco um romance policial, mas, é claro, em clima de ficção científica, e, neste livro, também de fantasia: é uma experiência emocionante chegar a Thamber e descobrir que ele é real. Colonizado por humanos em tempos antigos, o planeta ficou por muito tempo isolado, o que levou a civilização, nele, a regredir até um estágio técnico e social que lembra a Baixa Idade Média da Terra. Vance (que faleceu em 2013, aos 96 anos de idade) parecia gostar desse conceito, pois o utilizou em pelo menos mais duas histórias: The Miracle Workers ('Os Milagreiros') e The Dragon Masters (publicado no Brasil como 'O Planeta dos Dragões'). A ideia, que poderia facilmente soar ridícula em mãos menos hábeis, dá resultados formidáveis quando quem a usa é um mestre como Vance. É inexplicável que um autor desse calibre, cultuado mundo afora e reverenciado por gente como Ernest Cline, Neil Gaiman, George R. R. Martin, entre outros, tenha tido tão poucos livros publicados no Brasil, e que mesmo esses já não sejam reimpressos há uns 30 anos ou mais, só podendo ser encontrados em sebos, e com muita sorte.

Por falar em sebos e em sorte, quero finalizar com uma curiosidade. Possuo ambas as versões de The Killing Machine existentes em português: a da editora brasileira Francisco Alves, de 1980 (dentro da coleção Mundos da Ficção Científica), intitulada A Máquina de Matar, e a da portuguesa Europa-América, sem data de publicação, chamada A Máquina Assassina. Comprei a edição portuguesa primeiro, acho que foi na Feira do Livro de Porto Alegre, nos idos dos anos 90, mas, ao encontrar a brasileira mais recentemente, e por um preço mínimo, comprei também, principalmente pela curiosidade de comparar as duas traduções – mas, até agora, só havia lido de cabo a rabo a versão portuguesa. Quando resolvi reler, ficava pulando de uma edição para a outra, não raro me surpreendendo do quanto uma tradução pode mudar um texto, e desejando ter também uma edição em inglês, para ver como certos trechos eram no original. Acabei constatando mais uma vez algo que já sabia sobre mim mesmo: não sou uma pessoa "desprendida" (sou do tipo que, quando vai a um restaurante de que gosta, tem a tendência de pedir sempre o mesmo prato; perguntem a Cintia). Voltei para a edição portuguesa, concluindo que gostava mais dela, embora isso possa ser apenas porque já a conhecia!… Além disso, por razões que ignoro, na tradução brasileira Kokor Hekkus é frequentemente chamado apenas de "Kokor", e não acho recomendável demonstrar tanta intimidade com um notório malfeitor. Em todo caso, ao escrever este texto, procurei usar as palavras da terminologia do universo de Jack Vance do modo como aparecem na edição brasileira (exemplo: UPV em vez de SVU – a edição portuguesa usa a sigla em inglês, de Standard Value Unit), já que aqueles de vocês que quiserem ler o livro e tiverem sorte o bastante para consegui-lo, provavelmente encontrarão a edição da Francisco Alves. Por outro lado, optei por ilustrar o post com a capa da edição portuguesa, que é, de longe, muito mais bonita… Aliás, para falar francamente, a capa da nacional é muito feia. Mas, seja qual for a edição, não deixem de ler se puderem.