domingo, março 26, 2017

Ed & Lorraine Warren: demonologistas

Os nomes de Edward e Lorraine Warren são há muito conhecidos por todos os que se interessam pelo estudo dos fenômenos sobrenaturais – e, nos últimos anos, também pelos que não perdem um blockbuster hollywoodiano de terror, pois Invocação do Mal tornou-se uma franquia que já conta com dois filmes oficiais e um spin-off, Annabelle, que é a respeito da boneca demoníaca que aparece rapidamente no primeiro filme. Entretanto, como em todo assunto do qual se apossa (epa!), Hollywood acrescentou um bocado de pirotecnia, enxertou mais drama, mais cenas de ação rápida, e fez tudo parecer muito mais simples do que realmente é; por isso, entre outros motivos, este livro é recomendável. Ele traça um panorama das quase cinco décadas da carreira dos Warren como investigadores de fenômenos ocultos e fornece um resumo de alguns de seus casos mais ilustrativos (incluindo o de Annabelle). O resultado é uma leitura para lá de inquietante – menos intensa que uma história de Stephen King, talvez, mas com probabilidades muito maiores de fazer você ter vontade de dormir com a luz acesa, pelo simples motivo de que o que King escreve, em princípio, é ficção… Já as histórias dos Warren são apresentadas como verídicas.

Ed Warren, que faleceu em 2006, foi o único exorcista não ordenado reconhecido pelo Vaticano em toda a história; na verdade, chegou a ser solicitado a ajudar no treinamento de padres exorcistas. Lorraine possui poderes mediúnicos e, hoje, aos 90 anos, ainda profere palestras e administra o museu que montou com o marido, e que é, ao mesmo tempo, uma espécie de depósito de lixo radioativo: ele reúne uma vasta variedade de objetos amaldiçoados, ligados aos casos que investigaram. Segundo o casal, muitos deles só precisariam ser tocados por uma pessoa desavisada para desencadear consequências funestas em sua vida. No primeiro Invocação do Mal, ao ser questionado se não seria melhor simplesmente queimar esses objetos, Ed explica que isso só destruiria o receptáculo, e que, às vezes, é mais seguro manter o gênio dentro da garrafa.

Segundo seus amigos e biógrafos, Ed era um homem bem-humorado por natureza, e cuja calma era difícil abalar. Uma das poucas coisas capazes de irritá-lo era quando alguém (geralmente no momento perguntas-e-respostas, durante as palestras que ele e Lorraine faziam) iniciava seu aparte esclarecendo, a priori, que "pessoalmente, não acreditava no sobrenatural", ou coisa parecida – o que, para bom entendedor, significava que, para tal pessoa, tudo o que os Warren acabavam de dizer não passava de baboseira. Na visão de Ed, não existem pessoas que acreditam ou não no sobrenatural: o que existe são pessoas que já tiveram a prova de que o sobrenatural é real, e pessoas que ainda não a tiveram. A questão não se presta a "achismos": mostrar-se cético a respeito da lei da gravidade não vai poupar você de nenhum tombo. É fácil demais uma pessoa sem nenhuma experiência na matéria sentar-se num auditório bem iluminado, cheio de gente, movimento e normalidade, e dizer que não acredita no sobrenatural, mas Ed, na certa, gostaria de saber o que tal pessoa diria se tivesse visto o que ele e Lorraine viram em apenas um ou dois das centenas de casos que investigaram.

Gerald Brittle, organizador do livro, conduziu muitas das entrevistas que aparecem nele, e selecionou e editou as demais, além de ter selecionado também, junto com os Warren, quais os casos que seriam detalhados a título de ilustração (a publicação original é de 1980, quando o casal estava em plena atividade; parece que houve uma reedição nos Estados Unidos em 2002, e esta edição nacional é do ano passado). É preciso, primeiramente, separar algumas coisas que a mídia costuma apresentar embaralhadas. Ed Warren, em algumas entrevistas, mostra-se bastante enfático ao aproveitar a oportunidade aberta por certas perguntas para separar o que é pesquisa parapsicológica do que é pesquisa de fenômenos ocultos. Geralmente, o mesmo tipo de ocorrência acaba sendo investigado por pesquisadores dos dois campos, mas cada um possui um enfoque muito diferente. O parapsicólogo, embora vinculado a um ramo ainda pouco tradicional da ciência, opera a partir dos pressupostos desta última – e o primeiro pressuposto da ciência é que qualquer fato observado, não importa o quão incompreensível pareça à primeira vista, deve ter uma explicação natural. Já se sabe há algum tempo que a mente humana possui poderes latentes que podem ser ativados sob certas condições; a psicocinese, por exemplo, é a capacidade de mover objetos sem contato físico, muitas vezes de forma involuntária e até inconsciente – ou seja, uma pessoa pode causar tais fenômenos sem querer, e até sem saber que é ela quem está fazendo isso. Trata-se de algo que a ciência já sabe que é real, embora ainda esteja longe de conseguir explicar, e não há dúvida de que muitas ocorrências registradas em casas "assombradas", na verdade não eram mais que episódios de psicocinese. Porém, isso não se aplica a todos os casos, e a principal crítica de Ed aos parapsicólogos é que muitos deles, ao não conseguirem explicar determinados eventos, simplesmente os rotulam como fenômenos Poltergeist, ou coisa parecida, e param por aí – trazendo pouco alívio a quem está sendo atormentado em casa por forças espirituais hostis. É onde entram pesquisadores de outro tipo, como Ed e Lorraine.


Chegando a esse ponto, outra separação é necessária. Quando já se apurou que as perturbações num local, ou em torno de uma pessoa ou família, têm causas sobrenaturais, ainda é preciso determinar se são de origem humana ou inumana. Um espírito humano é o clássico fantasma: alguém que morreu, mas, por algum motivo, não "foi adiante"; geralmente trata-se do espírito de uma pessoa cuja morte foi marcada por violência, por sentimentos fortes e negativos, ou que morreu com a sensação de ter deixado pendente algum assunto que, para ela, era muito sério. Esses espíritos podem permanecer num lugar durante anos, décadas ou séculos; na verdade não têm consciência alguma da passagem do tempo, e muitas vezes até ignoram que estão mortos. De qualquer forma, e ainda que suas manifestações possam ser muito assustadoras, os fantasmas, segundo o casal Warren, são o tipo menos problemático de ocorrência sobrenatural. Em geral estão preocupados consigo mesmos; quando querem algo dos vivos, costuma ser atenção, ou até mesmo ajuda. É raro que tenham intenções malignas, e seus poderes são limitados. Muitas vezes, uma boa "conversa", do modo como isso for possível, é o suficiente para libertá-los e fazer com que sigam seu caminho no mundo espiritual, resolvendo o problema para todos. O outro tipo, o espírito inumano, é de longe muito pior. Trata-se de algo que "nunca caminhou sobre a terra em forma humana", e cujas intenções são invariavelmente malignas. Numa palavra, um demônio.

A boa notícia é que demônios não têm o poder de interferir diretamente na vida das pessoas, a menos que sejam convidados a isso; a má notícia é que eles são muito astutos e, não raro, conseguem achar subterfúgios para que as pessoas os convidem sem ter a menor noção do que estão fazendo. Coisas aparentemente inofensivas, brincadeiras com o oculto como a tábua Ouija (que em vários países possui versões industrializadas, vendidas em lojas de brinquedos feito um jogo de tabuleiro qualquer) ou o "jogo do copo" podem abrir uma porta que depois será extremamente difícil fechar – e pela qual podem passar coisas pavorosas além de qualquer descrição. Confesso que, quando comecei a ler os relatos dos casos neste livro, minha expectativa era a de que a coisa que me deixaria mais "passado" seria ver (mais um pouco) até que ponto as pessoas são capazes de ir para tentar moldar os acontecimentos à sua concepção de "realidade" – e não é que isso não apareça. É verdade que quem chegava ao ponto de procurar os Warren, geralmente já havia sido forçado a abandonar as tentativas teimosas de achar explicações "plausíveis", mas não antes de muito sofrimento e de perder um tempo precioso. Mas houve outra coisa que me rachou a cara ainda mais: ver até que extremos pode chegar a estupidez de algumas pessoas, como a senhora do "Caso Foster", que simplesmente deu um livro sobre conjuração de demônios como presente de Natal à filha adolescente "interessada em ocultismo". Tudo bem que ter curiosidade sobre essas coisas é natural a muitas pessoas, talvez até à maioria (eu não teria lido este livro se não tivesse alguma, e tenho a séria desconfiança de que vocês tampouco estariam aí me lendo se também não tivessem!), mas isso aí já é colocar uma arma carregada e destravada nas mãos de uma criança, e o fato de a mãe "não acreditar" que a munição dentro da arma pudesse ferir alguém não impediu as consequências catastróficas que se seguiram. Detalhe: na época em que Ed & Lorraine Warren foi publicado, ocultismo e feitiçaria eram muito populares nos Estados Unidos, tanto quanto o são hoje, principalmente entre os jovens; livros e revistas sobre o assunto eram muito fáceis de achar, e não eram só edições dando informações de caráter geral, para quem tinha uma mera curiosidade de fã de terror: havia também as que traziam instruções passo a passo para realizar qualquer tipo de ritual que vocês imaginarem. Para comprar a Playboy, você tinha que apresentar documento para provar que era maior de idade; já para comprar um manual de feitiçaria que poderia ferrar por completo sua vida e a da sua família, isso não era necessário. Não que hoje em dia seja melhor, é claro: se a oferta de publicações (impressas) desse tipo diminuiu, foi só porque agora está tudo na internet. Há outros casos citados como exemplos, alguns deles de pessoas que foram em busca de envolvimento com o oculto sabendo o que faziam (ou, mais provavelmente, achando que sabiam), na esperança de conseguir algo que desejavam – e que acabaram, da mesma forma como as outras, precisando da ajuda dos Warren para ter uma chance de sobreviver ao assalto de forças invisíveis que aproveitaram a porta aberta e pareciam decididas a aniquilá-las, fosse emocional ou fisicamente, ou de ambas as formas.

Mais dos ensinamentos de Ed: um caso clássico de ataque demoníaco tem três fases – infestação, opressão e possessão. A infestação é o período no qual o espírito, ou espíritos, estão se instalando; e, como tais seres são grandes estrategistas, sempre sabem quando é melhor (para eles, é claro) fazê-lo de forma silenciosa, ou já se anunciando por meio de pequenos fenômenos destinados a causar um início de inquietação e medo. Durante o período da opressão, passam a ocorrer fenômenos agressivos e assustadores, como objetos levitando e voando pela casa, som de vozes, passos e respirações, odores repugnantes vindos de lugar algum, batidas em portas e paredes, aparecimento de vultos – podendo, com o tempo, descambar para agressões físicas diretas, tudo com o objetivo de enfraquecer e minar a força de vontade da pessoa ou pessoas sob ataque, deixando-as no estado ideal para a terceira fase: a possessão, na qual o corpo da pessoa passa a ser aparentemente controlado por uma vontade maligna, alheia à sua. A simples ideia é de gelar o sangue, imagine-se como seria testemunhar tal coisa, ou, pior, passar por ela.

"(…) Embora a possessão ou o pandemônio tenha sido testemunhado em primeira mão, as pessoas geralmente não conseguem aceitar o fato de que forças invisíveis de natureza sobrenatural foram as reais causadoras do caos. A sociedade é, em parte, responsável pelo problema, é claro. As pessoas têm sido metodicamente ensinadas a não acreditar em fantasmas, espíritos e forças sobrenaturais porque se supõe que essas coisas sejam 'irracionais'. Na minha opinião, fechar a mente ao conhecimento é que é irracional. No aconselhamento, as pessoas precisam desaprender a percepção estreita da vida que lhes foi ensinada, e, então, serem expostas ao fato de que o mundo é um lugar muito mais complexo e sério do que elas foram levadas a acreditar." (Lorraine Warren)


Além de narrar casos em que os Warren atuaram diretamente, o livro inclui as análises deles a respeito de outros fenômenos conhecidos do mesmo tipo, inclusive o caso da estudante alemã Anneliese Michel, que acredita-se ter vivido um calvário que durou três anos, até finalmente falecer em 1976, e cujos pais foram levados a julgamento sob a acusação de negligência, por terem, supostamente, decidido suspender o tratamento médico para procurar a ajuda de um padre exorcista, o qual também foi julgado. A história de Anneliese, numa versão hollywoodizada, é claro, está em O Exorcismo de Emily Rose, que, apesar da americanização forçada e da mistura insólita de terror com filme de tribunal, não deixa de ser uma boa dica.

O sobrenatural é um campo no qual cada um terá suas próprias convicções, e será necessariamente a partir delas que Ed & Lorraine Warren deverá ser lido; só posso adiantar que, a menos que você seja um cético empedernido (o que, a meu ver, não é melhor que ser um crédulo ingênuo), achará estas histórias difíceis de ignorar, assim como as asserções sólidas e lógicas, sempre bem embasadas, expostas pelo casal nas entrevistas. Pessoalmente, não tenho dúvida de que há no universo muita coisa invisível, intangível, e nem por isso menos real, e de que pretender reduzir tudo ao plano da matéria é uma forma de cegueira voluntária. Como diz Lorraine, não deveríamos fechar a mente ao conhecimento apenas porque ele não parece se encaixar nos ditames daquilo que fomos treinados para considerar crível. Além disso, ter ciência de que mexer com tais coisas pode ter consequências muito graves talvez ajude algumas pessoas a pensar duas vezes antes de se meterem com algo de que depois se arrependam.

Aproveitando a oportunidade, quero registrar um elogio ao trabalho que o selo Darkside vem fazendo, publicando uma ampla variedade de livros (muitos deles, títulos não óbvios) destinados aos interessados em terror, suspense e sobrenatural, em caprichadas edições de capa dura e com um visível esforço para oferecer uma boa qualidade editorial: coisas assim há muito andavam fazendo falta nas livrarias nacionais. Esperemos que continuem a surgir.